Multa pelo não fornecimento de medicamentos

Multa pelo não fornecimento de medicamentos

Em 26/04/2017, foi julgado o Recurso Especial 1.474.665-RS1, de relatoria do ministro Benedito Gonçalves. No referido recurso foi discutida a possibilidade de ser imposta multa ao poder público por descumprimento do dever de fornecimento de medicamentos decorrente de decisão judicial. Tal a relevância e recorrência do tema nos tribunais que o referido recurso foi alçado à condição de representativo de controvérsia da Tese 98 do Superior Tribunal de Justiça, tendo sido, por fim, firmada a “possibilidade de imposição de multa diária (astreintes) a ente público, para compeli-lo a fornecer medicamento à pessoa desprovida de recursos financeiros”.2

Em que pese a aparente peremptoriedade da tese resultante do julgamento, o seu alcance merece maiores considerações. Isto porque, não se deve ignorar a precisa função das astreintes, que é a de compelir o devedor a cumprir a sua obrigação. Como ensina José Carlos Barbosa Moreira, “pode recorrer-se, no direito brasileiro, à ameaça de dano pecuniário (multa), grave o bastante para que o devedor, na contingência de optar entre sofrer o dano e cumprir a obrigação, seja levado a escolher o segundo termo da alternativa.3 Portanto, para que o objetivo da multa seja atingido, o cumprimento da obrigação tem que estar ao alcance do devedor. Vale dizer: o campo propício para a imposição de multa é a situação em que, podendo o devedor cumprir a obrigação, deliberadamente não a cumpre.

Diversa será a situação em que o devedor deixa de cumpri-la por impossibilidade. Se não é possível ao credor cumprir a obrigação, a imposição de multa passa a ser antijurídica, carecendo de razoabilidade, em violação ao art. 8º do CPC, na medida em que jamais atingirá a sua finalidade. Nesses casos, a multa representará, pura a simplesmente, a transferência de parcela do patrimônio do devedor para o patrimônio do credor, sem que a prestação pretendida seja, de fato, satisfeita. Será configurada situação de cristalino enriquecimento sem causa, em desconformidade com o disposto no art. 884 do Código Civil.

No que se refere aos casos de determinação judicial para fins de fornecimento de medicamentos pelo poder público, necessário se faz analisar os casos em que o descumprimento da decisão ocorre por simples recalcitrância e aqueles em que o descumprimento ocorre por impossibilidade. Para tanto, relevante será passar rapidamente pelas características da política de assistência farmacêutica instituída no Brasil. A previsão legislativa de implantação de uma política de medicamentos se encontra prevista no art. 6º, inciso VI, da Lei 8080/90, que assim dispõe:

“Art. 6º. Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

(…)

VI- a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção;”

A efetivação da implantação da Política Nacional de Medicamentos se deu por meio da Portaria 3916/98 do Ministério da Saúde.4 O item 3 do anexo à referida Portaria traz as diretrizes da referida Política, a qual pretende assegurar à população o acesso “a medicamentos seguros, eficazes e de qualidade, ao menor custo possível (…)”. De modo a serem atingidos tais objetivos, o item 3.1 das Diretrizes estabelece a adoção de relação dos medicamentos essenciais, que são:

“aqueles produtos considerados básicos e indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população. Esses produtos devem estar continuamente disponíveis aos seguimentos da sociedade que deles necessitem, nas formas farmacêuticas apropriadas, e compõem uma relação nacional de referência que servirá de base para o direcionamento da produção farmacêutica e para o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como para a definição de listas de medicamentos essenciais nos âmbitos estadual e municipal, que deverão ser estabelecidas com o apoio do gestor federal e segundo a situação epidemiológica respectiva.”

O estabelecimento de uma lista de medicamentos essenciais, a serem fornecidos gratuitamente pelo poder público, é o cerne da Política Nacional de Medicamentos. E é por meio dessa lista que se permite a racionalização de tal dispensação, com o atendimento a critérios de segurança, eficácia, qualidade e menor custo. Logo, os medicamentos que não se encontram incorporados na lista do SUS estão fora da política pública estabelecida, já que, presumivelmente, não atendem àqueles critérios.

Daí a possibilidade de os medicamentos disponíveis no mercado serem classificados em dois grandes grupos: a) aqueles incorporados às listas do SUS; e b) aqueles não incorporados às referidas listas. Quanto ao primeiro grande grupo, os medicamentos que o compõem devem constar dos estoques do ente responsável por sua dispensação à população. O ente respectivo deve, assim, envidar os esforços necessários para que seus estoques sejam suficientes ao atendimento da demanda. Já os medicamentos não incorporados às listas do SUS, em regra, não fazem parte daqueles estoques. Afinal, as políticas públicas de medicamentos foram concebidas sem a presença deles. E não há como admitir como possível política pública que preveja o fornecimento de todo e qualquer medicamento.

Pois bem: havendo decisão judicial determinando o fornecimento de medicamento não incorporado ao SUS, presume-se a ausência do produto no estoque do ente federativo, tendo em vista não integrar a política pública de assistência farmacêutica. Nesse caso, o descumprimento de decisão judicial não advém de simples recalcitrância do ente, mas sim de efetiva impossibilidade de seu cumprimento. Afinal, ao contrário do particular, não é possível ao ente se dirigir à farmácia mais próxima para adquirir o medicamento pleiteado. Sua aquisição deverá ser precedida do competente procedimento administrativo, o que, decerto, leva vários dias para ser finalizado. A incidência de multa ao longo da duração do procedimento administrativo de aquisição do medicamento não ensejará o fornecimento imediato do medicamento, tendo como efeito, apenas, uma maior pressão sobre as já combalidas finanças estatais. É preciso dizer: o pagamento de multa nessas circunstâncias implica uma redistribuição de renda às avessas, com a canalização de porção do patrimônio estatal para um único particular.

Por outro lado, deve-se atentar para o disposto no art. 805 do CPC/15, o qual prevê que a execução se dê pelo modo menos gravoso para o executado. Em se tratando de obrigação de fornecimento de medicamentos, recorrentes são as decisões que determinam a sua busca e apreensão e, em caso de inexistência em estoque, o bloqueio de valores da fazenda pública com destinação específica à aquisição do produto. O Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido da possibilidade de haver bloqueio de valores para assegurar o fornecimento gratuito de medicamentos pelo poder público.5 Os bloqueios, em caso de inexistência dos medicamentos no estoque do ente, compõem melhor os interesses envolvidos na discussão. Afinal, de um lado, viabilizam a aquisição imediata do medicamento, com a satisfação do paciente; de outro, desonera o poder público quanto à obrigação de pagar astreintes.

A única hipótese em que se vislumbra a possibilidade de pagamento de multa pelo poder público por descumprimento da obrigação de fornecimento de medicamentos é aquela em que há o produto em estoque, mas o ente, de forma deliberada, se recusa a fornecê-lo. E essa presença em estoque, em geral, somente se dará quanto a medicamentos incorporados ao SUS e cuja atribuição de fornecimento tenha sido cometida ao ente executado. Ainda assim, tal multa somente deverá incidir até que ultimadas as providências tendentes à busca e apreensão para fins de aquisição dos medicamentos. Isto porque, mesmo com a incidência da multa, paralelamente à sua incidência devem ser realizados os atos que visam à satisfação material do paciente, que somente se dará com a aquisição do medicamento.

O que daí se infere é que, apesar de, em tese, ser possível a imposição de multa ao ente por descumprimento da obrigação de fornecer medicamentos, esta somente se dará em situações muito específicas, não se podendo generalizar o alcance da decisão prolatada no Recurso Especial 1.474.665-RS.

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