A morte abrupta de um pai antes do nascimento do filho não livra o responsável pelo evento que deu causa à sua morte de indenizar a criança em danos morais e materiais. Afinal, os direitos do nascituro iniciam na concepção — como prevê o artigo 2º do Código Civil — e abrangem o direito à reparação.
A conclusão é da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao reformar sentença que negou indenizações ao filho de um passageiro atropelado e morto na rodovia após ser expulso do veículo por se encontrar embriagado, causando tumulto.
O relator da apelação, desembargador Umberto Guaspari Sudbrack, disse que, independentemente do passageiro ter embarcado no ônibus com ou sem pagamento de passagem, a empresa transportadora assumiu a responsabilidade de levá-lo incólume até seu destino final. Em outras palavras, se a empresa aceitou-o como passageiro, atraiu, para si, a responsabilidade pela sua integridade.
No caso concreto, em função da embriaguez, o desembargador-relator entendeu que o passageiro deveria ser deixado num lugar seguro – estação rodoviária ou delegacia de Polícia mais próxima –, e não numa parada de ônibus no meio da estrada. Por isso, a conduta do motorista da empresa caracterizou abuso de direito, a teor do artigo 188, parágrafo único, do Código Civil.
“Logo, embora possível a responsabilização da demandada, porquanto violada a cláusula de incolumidade ínsita aos contratos de transporte, a teor do artigo 734 do CC/2002, considerando a regra do artigo do artigo 945 do mesmo Código, as rubricas indenizatórias devem ser reduzidas de maneira proporcional à gravidade da culpa da vítima, a qual considero em 70%”, escreveu Sudbrack no voto.
Com a reviravolta do caso na Corte, o filho ganhará indenização por danos morais em valor equivalente a 25 salários mínimos; terá 30% das despesas com tratamento psicológico pagas e ainda receberá pensão mensal no valor de 1/5 de salário mínimo até completar 25 anos de idade.
A decisão, por maioria, foi referendada em acórdão lavrado no dia 19 de junho, quando o colegiado desacolheu os embargos declaratórios opostos pela empresa transportadora.
Largado na rodovia
Em 23 de maio de 2003, por volta das 16h30min, João Pedro de Mello embarcou num ônibus da Planalto Operadora de Turismo, em Santana do Livramento, para retornar ao assentamento rural onde residia, na cidade de Rosário do Sul. O homem estava visivelmente embriagado, lamentando-se e chorando copiosamente por não ter ido ao enterro do pai e por se encontrar longe da família. Em dado momento, em função da balbúrdia, segundo testemunhas, ele foi agredido com um soco na cabeça, desferido pelo motorista.
Horas depois da agressão, em face de um tumulto causado por João Pedro, o motorista retirou-o do ônibus, largando-o no acostamento da BR 158, perto de uma parada de ônibus, em Santana do Livramento. Por volta das 23h30min, vagueando pela rodovia, o passageiro acabou atropelado por um caminhão na altura do km 476, vindo a falecer. Ele deixou a esposa grávida do autor – nascido em dezembro de 2003 e vínculo biológico com o pai reconhecido em 2009.
Ação indenizatória
Em março de 2011, o filho reconhecido, João Felipe dos Santos, ajuizou ação indenizatória por responsabilidade civil em face da Planalto na 1ª Vara Cível de Cruz Alta (RS). Disse que seu pai adquiriu a passagem dentro da rodoviária, de modo que tinha direito de ser transportado até o seu destino, incólume, a teor do que dispõe o artigo 734 do Código Civil. Segundo o dispositivo, ‘‘O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade’’.
Na inicial, o autor salientou que os funcionários da empresa transportadora sabiam que ele não tinha dinheiro. Logo, ao ser abandonado em local ermo e perigoso, de forma arbitrária, submeteu-o a “riscos consideráveis”. Em síntese, o funcionário da empresa desencadeou toda a sucessão de fatos que, no fim das contas, levou à morte do passageiro.
Após pintar este quadro, pediu a responsabilização da ré, com fundamento no artigo 932, inciso I, do Código Civil. Pleiteou o pagamento de danos morais e o custeio de tratamento psicológico, além do arbitramento de uma pensão vitalícia, nos termos do artigo 948, inciso II, do Código Civil — prestação de alimentos às pessoas a quem o morto devia, se vítima de homicídio.
A defesa da empresa
Citada pela Vara, a empresa ré apresentou contestação. Afirmou que a expulsão do veículo e o atropelamento fatal tiveram como causa única a embriaguez do passageiro. Informou que a vítima embarcou no ônibus sem ter comprado passagem, sendo conduzida por alguns quilômetros por mera cortesia.
Por fim, garantiu que teria levado o pai do autor até o destino final, não fosse o seu comportamento inadequado e ofensivo aos demais passageiros, sendo compelido a desembarcar. Ou seja, a conduta do próprio passageiros tornou insustentável a sua presença no interior do veículo.
Sentença de improcedência
Em sentença proferida no dia 4 de outubro de 2018, a juíza Juliana Pasetti Borges julgou improcedente a ação indenizatória, por entender que não houve falha na prestação do serviço, já que a ação advém de relação consumerista. Na percepção da juíza, o atropelamento, ocorrido mais de seis horas após a expulsão do ônibus, afasta a responsabilidade civil da Planalto, pois configura hipótese de ‘‘caso fortuito externo’’. Afinal, o fato danoso não teve qualquer vínculo com a atividade prestada pela empresa ré — o transporte de passageiros.
“A inexistência de testemunhas oculares e a constatação de que o demandante [passageiro abandonado na rodovia] adentrou abruptamente na pista, de noite, vindo a ser atropelado, levou ao arquivamento da ação penal em face do motorista do caminhão, a pedido do Ministério Público. Desse modo, tendo em vista que o atropelamento configurou caso fortuito externo, houve o rompimento do nexo de causalidade, não respondendo o réu pelo fato danoso”, fulminou na sentença.